sábado, dezembro 7, 2024
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    ‘Moças do calutron’: como milhares de mulheres ajudaram a preparar urânio para bomba atômica de Hiroshima sem saber

    Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 10 mil jovens americanas trabalharam, sem saber, enriquecendo urânio em um laboratório secreto do governo.

    Era 1943, plena Segunda Guerra Mundial, e Ruth Huddleston tinha acabado de terminar o ensino médio em sua pequena cidade no Tennessee, nos Estados Unidos.

    Ela havia conseguido um emprego em uma fábrica de meias local, mas notou que a maioria de seus colegas de trabalho estava se candidatando para trabalhar em uma grande instalação que estava sendo construída em uma cidade próxima chamada Oak Ridge.

    Vários de seus amigos a encorajaram a se candidatar também.

    Como ela não tinha como chegar lá, perguntou ao pai se ele poderia levá-la. Ele próprio decidiu que também aproveitaria a oportunidade para ver se conseguiria um dos cobiçados empregos oferecidos por este novo grande projeto do Departamento de Estado dos EUA.

    “Nós dois conseguimos empregos”, Ruth se lembraria muitas décadas depois, agora com 93 anos, durante uma entrevista da série especial chamada “Vozes do Projeto Manhattan” conduzida pela Atomic Heritage Foundation.

    Sem o conhecimento de Ruth e seu pai, eles estavam trabalhando para o Oak Ridge National Laboratory, uma parte fundamental do plano secreto dos EUA para construir uma bomba atômica no famoso Projeto Manhattan, tema do filme Oppenheimer.

    Quando adolescente, Ruth começou a trabalhar em uma das fábricas de Oak Bridge chamada Y-12 como “operadora de cubículo”.

    “Antigamente chamávamos assim, mas hoje em dia nos chamam as moças do calutron”, disse a veterana na entrevista de 2018, ano em que o Laboratório Nacional de Oak Ridge completou 75 anos.

    O que faziam as ‘moças do calutron’?

    Ruth fazia parte de um grupo de cerca de 10 mil jovens que, sem saber, estavam envolvidas em uma tarefa que seria fundamental para o desenvolvimento de Little Boy — a bomba atômica que seria lançada dois anos depois na cidade japonesa de Hiroshima.

    Com muitos dos homens lutando na linha de frente da guerra, as mulheres desempenharam um papel crucial no plano secreto para fazer a primeira bomba atômica. — Foto: Ed Westcott/ US Department of Energy via BBC

    Essas mulheres operavam os painéis de controle dos calutrons, máquinas usadas para separar isótopos de urânio para que ele pudesse ser enriquecido e usado como combustível nuclear.

    E, embora não soubessem, o Y-12 era, na verdade, uma usina criada para separar isótopos eletromagnéticos em escala industrial, separando o urânio 235 mais leve do urânio 238 mais pesado e comum, para enriquecê-lo.

    Embora os mais de 1,5 mil calutrons — espectrômetros de massa adaptados pelo químico nuclear americano Ernest Lawrence para enriquecer urânio, como parte do Projeto Manhattan — desempenhassem uma tarefa extremamente sofisticada, operá-los não era muito complexo: era preciso monitorar os medidores e saber quando ajustar os botões.

    Dada a escassez de mão-de-obra qualificada devido à guerra, os promotores do projeto decidiram recrutar jovens mulheres dos arredores.

    Por meio de uma série de testes, eles descobriram que essas moças faziam um trabalho ainda melhor do que muitos cientistas no manuseio dos calutrons, já que os especialistas tendiam a se distrair com as máquinas ou a tentar fazer experiências com elas.

    Ruth se lembra da primeira vez que se deparou com esses estranhos equipamentos gigantes.

    “Depois que nos deram sinal verde para começar a trabalhar, eles nos levaram para uma sala cheia do que chamávamos de cubículos, que eram grandes dispositivos de metal com todos os tipos de medidores, que eles nos ensinaram a operar”, lembrou Ruth.

    “Eles nos explicaram que se o calibre fosse muito para a direita, tínhamos que ajustá-lo com o mostrador para recentralizá-lo, e se fosse muito para a esquerda, a mesma coisa. Às vezes você não conseguia estabilizar e aí você ligava para o supervisor.”

    A tarefa central das trabalhadoras era manter a temperatura no tanque estável. Caso ficasse muito quente, elas o esfriavam (com nitrogênio líquido).

    “Passávamos o dia sentadas em banquinhos em frente aos cubículos, mal nos levantando para ir ao banheiro”, lembra Ruth sobre essa tarefa.

    “Você ficava com medo de sair porque a máquina poderia ‘quebrar’, como dizíamos”, conta ela.

    Ruth Huddleston foi uma das milhares de mulheres que, sem saber, produziu o combustível para a primeira bomba nuclear — Foto: US Department of Energy via BBC

    Segredo de Estado

    O que Ruth mais lembrava daquela época era o sigilo sobre todas as operações.

    “Antes de começar o trabalho, eles nos treinaram por várias semanas e a primeira coisa que nos disseram foi que não podíamos falar sobre nada do que estava acontecendo ou o que estávamos fazendo lá“, disse ela.

    “Eles levaram isso muito a sério. Disseram-nos que haveria consequências, incluindo multas, se fôssemos apanhadas fazendo algo, e seríamos automaticamente despedidas”, recordou.

    Ruth disse que, a rigor, se alguém lhe perguntasse o que ela fazia, ela “não contaria o que fazia porque a verdade é que eu realmente não sabia”.

    Como Ruth, a maioria das mulheres que se dedicaram ao enriquecimento de urânio nunca souberam o que estavam fazendo.

    “Eu me questionei por que nunca perguntávamos uma à outra o que estávamos fazendo”, ela admitiu quando idosa. “Por que não falávamos sobre isso? Mas a verdade é que não me lembro de ter pensado nisso na época.”

    De acordo com o Parque Nacional do Projeto Manhattan, algumas das “moças do calutron” eram mais curiosas.

    “Várias dessas mulheres se lembram de casos de colegas de trabalho desaparecendo de seus postos inesperadamente, muitas vezes porque estavam muito curiosas sobre seu trabalho”, observou a agência.

    Ruth lembra apenas que “a única coisa que eles nos disseram foi que estávamos ajudando a vencer a guerra, mas não tínhamos ideia de como estávamos ajudando”.

    Hiroshima

    Em 6 de agosto de 1945, quando os EUA lançaram uma bomba atômica no Japão, elas foram informadas sobre o que estavam trabalhando há dois anos. Ruth lembrou-se do que sentiu naquele dia.

    “Eu estava no trabalho quando foi anunciado. A princípio, ficamos felizes em pensar que a guerra havia acabado. A primeira coisa que pensei foi: ‘Meu namorado poderá voltar para casa'”, disse ela sobre seu companheiro, que, como tantos outros jovens americanos, foi enviado para a guerra.

    “Mas então eles começaram a falar sobre todas aquelas pessoas que morreram lá. E comecei a pensar em outra coisa, que eu tinha parte nisso”, disse ela. “Não gostei da ideia de fazer parte disso”, reconheceu.

    “Mas você sabe, guerra é guerra e não há nada que você possa fazer a não ser tentar pará-la”, concluiu sobre o conflito, que continuou apesar do fato de os nazistas já terem se rendido em maio daquele ano.

    “Ainda não gosto da ideia. Mas você tem que fazer [o trabalho]. Alguém tem que fazer”, disse.

    “Little Boy”, carregando o urânio enriquecido na usina Y-12, matou dezenas de milhares de pessoas em Hiroshima em 6 de agosto de 1945. — Foto: Ed Westcott/ US Department of Energy via BBC

    Acredita-se que entre 50 mil e 100 mil pessoas morreram no dia em que Little Boy explodiu, carregando uma carga de 64 quilos de urânio-235 produzido na usina Y-12.

    A explosão gerou uma onda de calor de mais de 4.000ºC em um raio de aproximadamente 4,5 km.

    Cerca de 50% daqueles que sobreviveram à explosão morreram de radiação.

    Apesar de terem trabalhado perto de um material altamente radioativo, as “moças do calutron” não sofreram consequências (seus níveis de radiação eram medidos todos os dias).

    Três dias após o lançamento de Little Boy, o governo dos EUA lançou uma segunda bomba atômica, Fat Man, que — diferente da primeira — era feita de plutônio.

    O Japão finalmente se rendeu e, em 2 de setembro de 1945, a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim.

    Por BBC News

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